Música por aplicativo: como é que a música toca?
Música por aplicativo: como é que a música toca?
A precarização das relações de trabalho é uma realidade no mundo atual. A diminuição, o afrouxamento das leis do trabalho acompanhado das perdas salariais, bem como a inexistência de direitos trabalhistas, sociais e culturais por parte da “classe que vive do trabalho”, como apregoa o sociólogo e estudioso do mundo do trabalho Ricardo Antunes. É cada vez mais comum a “uberização” de algumas profissões.
Semana passada, recebi um panfleto eletrônico de um amigo com uma nova modalidade, a contratação de músicos por aplicativo. Ou seja, a “uberização” chegou ao universo musical. O modus operandi é o mesmo dos motoristas e motoqueiros: músico se cadastra em link fornecido virtualmente, depois aguarda o chamado e a escalação para uma programação em restaurantes e bares, parceiros do aplicativo.
À primeira vista, é uma excelente ideia para quem quer “uma oportunidade” de trabalhar e “mostrar o trabalho”. Depois começam a vir os problemas. Por exemplo, um cachê irrisório de R$ 350,00 para um trio tocar três horas. Entretanto, é um cachê bruto sem o desconto do aplicativo e emissão de nota fiscal de pessoa jurídica (Microempreendedor Individual – MEI ou Micro Empresa – ME). Com o desconto, o cachê agora diminui para R$ 250,00. Após o desconto do aplicativo, vem o tempo de espera para o recebimento do cachê, que varia de 15 a quarenta e cinco dias. A demora acontece por conta dos pagamentos digitais (cartões de crédito e débito), segundo os proprietários dos bares e restaurantes e operadores dos aplicativos. Mas se o trabalhador quiser receber com um prazo mais curto, o desconto é maior e o valor cai para duzentos e trinta reais.
Se o trabalhador se deslocar em seu automóvel vai pagar pelo combustível e estacionamento. E se não for, paga pelo deslocamento. Em se tratando consumação, a cota varia de lugar. Não existe um valor fixo, estes variam entre R$ 50,00 a noventa reais. Entretanto, em outros estabelecimentos, o profissional bebe água “prime” (Leia-se: água de torneira) e come resto de comida, conforme relato de um usuário do serviço.
Conversando com um músico que acessa esse tipo de plataforma, me relatou que não existe um contrato formal de trabalho. A relação não se dar entre o dono do estabelecimento e o profissional, e sim, entre o aplicativo e o músico. “Não existe papel algum assinado, só o cadastro lá no aplicativo” relatou o entrevistado.
No livro “O privilégio da servidão” Antunes joga luzes sobre a nova relação de trabalho que transfere para o indivíduo a capacidade, a necessidade e a obrigação de se virar fora da legislação social do trabalho. Trata-se de uma forma de individualizar a classe trabalhadora e criar a ilusão de que ela sobrevive sozinho.
Entretanto, os músicos, não só destas plataformas, deveriam ter o reconhecimento da sua condição de assalariamento como os demais. A sua conversão em “prestadores de serviço” serve para mascarar esta condição e fazer com que não tenham os direitos que, normalmente, o conjunto da classe trabalhadora tem como férias, 13º salário, descanso semanal, seguro saúde e etc.
Além disso, a ilusão do “empreendedorismo” faz com que o músico perca de vista o senso de coletividade, de classe social que sobrevive do trabalho, fazendo com que despreze e abomine qualquer tipo de legislação, de organização coletiva como os sindicatos e associações de classe. É a parábola da “barata que vibra e torce para o chinelo e o inseticida”.
Amaudson Ximenes Veras Mendonça é sociólogo, é Diretor presidente do Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado do Ceará
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